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 "The Wrong Way" - História. '-'

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Kaiser
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MensagemAssunto: "The Wrong Way" - História. '-'   "The Wrong Way" - História. '-' Icon_minitime28/3/2013, 19:04

Prólogo


A garota abriu os olhos e encarou, sofridamente, a luz que entrava por sua janela, ferindo-a. Não que ela tivesse dormido pelo menos cinco minutos durante a noite, mas descobrira, havia muito tempo, que era mais seguro fingir estar dormindo que chorar a noite toda. E depois de um tempo, tornara-se também mais reconfortante.

Virou-se desconfortavelmente, avaliando os danos. A dor no fundo do ventre, que espalhava-se por todas as suas costas, por entre os arranhões, mordidas e vergões roxos apenas esperando para que o tempo atuasse em sua coloração, tornando-os amarelados.

Havia muito tempo, ela era habituada com todas essas marcas. Sabia, por exemplo, mesmo sem olhar no espelho, que as marcas da última vez ainda não haviam sumido, e que essas novas marcas, por sua vez, não teriam tempo de desaparecer antes que outras mais aparecessem.

O mais difícil de se enfrentar em toda essa situação era que não havia para quem ou com quem contar. Era apenas ela contra o mundo.

Levantou-se lentamente, tentando aguentar as agulhadas de dor que brotavam em cada parte do seu corpo ao menor movimento.

Saiu do quarto, não pensando em café da manhã, pois estava enjoada. Apenas começou a perambular pela casa. Foi no banheiro e amarrou seus longos cabelos castanhos em um coque um pouco bagunçado. Escovou os dentes e voltou para o quarto. Vestiu sua camiseta favorita, daquelas enormes de time de futebol americano, e shorts jeans por baixo. Ao sair do aposento novamente, dessa vez em direção à cozinha, encontrou seu pai ao telefone.

- Não, Petter. – disse o pai, bravo, à pessoa do outro lado da linha. – Eu não... como você deixou isso acontecer? – uma pausa longa. – Você nem parece meu irmão, seu idiota! Não, eu não quero saber se foi por uma boa causa ou... tá, okay! Mas é temporário, e você trate de dar um jeito nessa sua vida.

Ele continuou falando, mas Emma não prestou atenção. Era normal ver seu pai brigando com o tio por telefone. Afinal, Petter era apenas mais um dos que não faziam o que John Leroy queria que fosse feito.

Serviu-se de um copo de iogurte e virou-se de frente para a janela, olhando à paisagem aos seus pés. Ela morava em frente a uma praia deserta, com palmeiras e tudo mais, daquelas onde, supostamente, toda família era feliz. O que, então, havia acontecido com a dela?

Era muito simples. Sua mãe, Mary, havia falecido quando ela tinha cinco anos, e ela fora jogada ao pai que por tanto tempo quis que a filha não existisse. Sua irmã mais velha, Elize, havia sido dada à adoção quando recusara-se terminantemente a morar com o pai.

Claro que, com cinco anos, Emma era pequena demais para dizer que seu pai não era a pessoa ideal para tomar seus cuidados. Tinha aquela mágica visão de um pai amoroso, gentil e que dava balas às filhas toda a noite após chegar do trabalho.

Ah, se ela soubesse naquela época que tipo de homem nojento era John, ela jamais teria aceitado morar com ele. Preferia mil vezes ser adotada por um par de bugios.

- Bom dia. – disse o grisalho homem entrando na cozinha.

Como aquele crápula ainda tinha coragem de deseja-la um bom dia? Depois do que ele fez?

- Bom dia. – respondeu ela, temerosa por ser ainda mais machucada.

Ele sentou-se, mas o café já estava na mesa, todo meticulosamente arrumado para ele. Desde seus seis anos de idade, era ritual da manhã, para Emma, arrumar o café do pai de maneira perfeccionista. A menos, é claro, que ela quisesse ainda mais sofrimento quando a noite chegasse.

E apendera também, desde seu primeiro dia naquela casa, duas lições importantes: jamais falar com ele quando não fosse ele a puxar o assunto, e mais importante ainda, jamais sair daquela casa.

- Petter vem morar com a gente por uns tempos, Emma. Quero que deixe seu quarto para ele.

- E eu vou dormir aonde, pai? – disse ela, olhando diretamente ao chão. Contato visual com ele era perigoso, mas mais que isso, era repulsivo.

- Pode dormir no meu quarto comigo. Ou pode dormir na cama velha do porão. Eu a deixo escolher. – disse ele, dando mais uma mordida na torrada e voltando, novamente, os olhos ao jornal.

- Eu prefiro dormir no porão. – respondeu a garota, sua voz quase sumindo.

O pai assentiu. Deu mais uma mordida na torrada, suspirando.

- Okay então, como preferir. Mas já sabe como funcionam as coisas, não sabe?

- Sei sim, papai. – disse ela, assentindo com a cabeça rapidamente. – Jamais comentar sobre.

- Exatamente. Quanto orgulho eu tenho de você, minha garota!

Levantou-se, puxou a cabeça da garota com a mão e pregou-lhe um estalado beijo na bochecha. Depois, despedindo-se, saiu rumo ao trabalho.

A garota correu para o banheiro e jogou-se em frente à privada, vomitando tudo o que tinha no estômago. Depois, colocou-se debaixo do chuveiro, esperando que a água morna do mesmo tirasse de seu corpo todo e qualquer resquício do repulsivo homem que acabara de a tocar.

Não funcionou.

~X~

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MensagemAssunto: Re: "The Wrong Way" - História. '-'   "The Wrong Way" - História. '-' Icon_minitime29/3/2013, 18:40

Capítulo 1
Mais um dia de sofrimento, mais um rosto vazio em sua vida.

Emma estava no escuro do seu quarto, com a cabeça coberta por um travesseiro e as memórias a amedrontarem-lhe a mente, quando ouviu o barulho da porta. Olhou para o relógio, temerosa pelo retorno de seu pai. 16:30, cedo demais. Com um suspiro aliviado, levantou-se, abriu a janela e calçou um par de chinelos. Ao sair do quarto, deparou-se com um homem a entrar pela porta da frente.

Havia muito tempo, mas ela ainda lembrava-se dele. Os cabelos castanhos e extremamente brilhantes, a barba rala por fazer, os olhos de um azul extremamente profundo e o sorriso lindo que sempre a fazia rir. Depois de dez anos, ele continuava igual!

- Tio Pette! – disse ela, correndo de encontro a ele e abraçando-o fortemente.

Uns dez centímetros a menos que seus 1,80, ela sentia-se minúscula e protegida perto dele.

- Emm! Mas olha só você, minha pequena Miss Sunshine! – disse ele, afastando-a pelos ombros, os olhos brilhando por ver a sobrinha. Abraçou-a novamente. – Que saudades, garota! Fazem, sei lá...

- Dez anos, Pette! Eu tinha nove aninhos quando te vi pela última vez.

Ele afastou-se dela e olhou-a de cima abaixo.

- E olha só agora! Tenho certeza de que você era um palmo menor quando eu te vi pela última vez.

Os dois riram.

Emma lembrou-se de quando era criança, de como era bom ouvir a risada rouca e melodiosa do tio, de como ele embalava suas tardes de sábado com sorrisos e brincadeiras, e de como sua alma parecia ser tão mais jovial que a do seu pai. Lembrou-se de ser carregara nas costas por ele e de, por tantas vezes, desejar que ele fosse seu irmão mais velho. Por que irmãos mais velhos nos protegem, pensou ela.

- Tio... – principiou-se ela.

- O que foi?

- Isso aqui... é um fio de cabelo branco, velhote? – disse, provocando-o, arrancando-lhe um fio de cabelo.

Ele a pegou e jogou-a sobre o ombro feito uma criança.

- Ah é? Então eu sou o velhote, não é, sua pivete? – jogou-a no sofá e principiou a um ataque de cócegas na garota.

De repente, entretanto, as cócegas pararam.

A garota respirou fundo e virou-se, sentando assustada. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os para trás do rosto.

- O que... quem te fez isso nas costas, Emma? – ele pausou. – Sua blusa subiu e... quem foi que te machucou?

- O que? – disse ela, tentando assimilar a informação. Cocozinho, ele vira. – N-ninguém! Eu caí das escadas e...

- São mordidas, Emma! A escada mordeu você, por acaso?

Ela baixou a cabeça tentando conter as lágrimas. Não funcionou.

- Só... esquece isso, Petter. Finge que você nunca viu. É melhor assim.

O rapaz pegou sua mala e largou-a no quarto da garota, sem dizer uma só palavra. Alguém havia ferido sua pequena princesinha, alguém a arranhara, mordera e batera nela. E mesmo assim, ela recusou-se a contar que fora o autor de toda aquela calamidade.

Como John deixara que alguém fizesse isso com a sua filha? Aliás, será que ele sabia que aquilo vinha acontecendo?

Durante o resto do dia, passou a observar a garota. Aquela menina sorridente não existia mais. Ela parecia agora acuada, com medo, com vergonha. Havia algo de muito errado acontecendo na vida daquela garota. Com que tipo de gente ela havia se metido, afinal? Com que tipo de gente ela andava longe dos olhos de seu pai?

E então, a porta da frente abriu e John Leroy deu de cara com seu irmão jogado no sofá, com olhar perdido em uma rachadura no teto, absorto em pensamentos.

- Petter! – disse ele, alegre, aproximando-se do irmão.

Petter o cumprimentou de volta, porém muito menos calorosamente. Ainda estava preocupado.

Conversaram por alguns minutos, mas as respostas do mais jovem eram todas monossílabas perdidas, mandadas de modo automático. Sua atenção não estava na conversa com o irmão.

- John... quem é o namorado da Emma?

- Ela não tem namorado. – respondeu ele, bebendo um gole do uísque em sua mão. – Ora vamos, ela não tem sequer amigos!

- Mas ela não sai? Digo, não tem ninguém com quem...

- Não, Petter, ela está sempre em casa. E quando eu digo “sempre”, é sempre mesmo! Nunca vi ninguém que goste tanto do lar quanto essa garota. Eu até digo para ela ir divertir-se, mas não, ela fica em casa o dia todo, sete dias por semana. Mas por que todo esse interesse?

- Por nada, John... é que faz muito tempo que eu não a vejo, e me sinto por fora de tudo relacionado a vida dela. Parece que eu não entendo mais nada do que se passa com essa garota.

O irmão mais velho riu.

- Acalme-se Petter, seu estressado! Eu te garanto que ela continua a mesma de sempre. Logo você se habitua a essa sombra perambulando pela casa.

Dizendo isso, ele deu um tapinha na perna do irmão, levantou-se do sofá e, pegando seu casaco, saiu da casa.

Emma estava no seu quarto, aos prantos, quando a porta abriu-se. Passou as costas das mãos por baixo dos olhos, tentando secar um pouco as lágrimas enquanto jogava o cabelo para frente do rosto, para disfarçar.

- Desculpa, tio, eu só estava pegando umas coisas para levar pro meu quarto e...

- Onde você vai dormir durante esse tempo, Emm? – pediu ele, interrompendo-a.

- No porão. Tem uma cama lá, e eu...

- Você sabe que não precisa, não é? Tem uma cama auxiliar embaixo da sua, eu posso pô-la na sala e dormir por lá. – disse ele, aproximando-se da garota e pondo a mão por sobre o ombro. Ela tremeu um pouco com o toque.

- Não precisa, tio Petter. – disse ela, esquivando-se do toque. – Eu vou ficar bem.

- Okay, se você insiste. Mas qualquer coisa, é só me chamar.

Ela assentiu com a cabeça, juntou a bolsa de coisas que havia separado anteriormente e, sem dizer mais uma palavra, saiu do quarto.

O homem jogou-se na cama, cobrindo o rosto com as mãos. Havia algo de muito errado que Emma não queria lhe contar. E ele descobriria, tinha que descobrir. Alguma coisa lhe dizia que sua sobrinha estava correndo perigo.

Decidiu que, enquanto estivesse por lá, cuidaria para que a garota não sofresse mais esses machucados. Não importava de onde eles surgiam. Aquilo tinha que parar.

~X~

Jantaram em silêncio naquela noite. Emma não ergueu os olhos uma vez sequer durante toda a refeição. À exceção da única vez em que pediu para que seu tio lhe alcançasse a salada, não proferiu uma só palavra sequer.

Aquilo tudo parecia um velório.

Depois que a refeição fora terminada, a morena recolheu a mesa e cuidou da cozinha. Enquanto isso, John fora dormir, e Petter sentou-se em um canto do aposento, observando cada passo que sua sobrinha dava, bem como cada traço da linda mulher que ela se tornara.

Era, simplesmente, uma princesa. Uma triste e taciturna princesa.

- Vai me contar o que está acontecendo? – pediu, de repente, enquanto a garota enxaguava um prato.

Ela parou de mover as mãos, deixando que a água escorresse por suas mãos e pela louça, sem parecer ter a intenção de continuar o serviço. Deu um suspiro pesado e recomeçou seu trabalho.

- Eu não posso. E não iria adiantar, de qualquer maneira. – disse ela, por fim, sem olhar para o tio uma única vez.

Petter ouviu, na voz de Emma, um mudo pedido de socorro. A dor, o medo, o ódio, a repulsa... tudo estava estampado naquelas poucas palavras. E ao olhar novamente para ela, a morena já chorava.

Ele levantou-se enquanto ela acabava de enxaguar o último prato e colocava-o no escorredor. Aproximou-se dela lentamente, até conseguir tocar em seu braço.

- Você precisa me contar, Emma. Seja lá o que for, você precisa em contar. Não há como passar por isso sozinha, e você também não precisa fazer isso. Eu estou aqui. Eu vou te ajudar.

Ela virou-se para o tio, e quando percebeu, ele estava tão próximo que ela sentia-se encurralada, claustrofóbica.

- Não dá! Sinto muito.

- Emma, por favor...

Ele tentou falar, mas a garota já tinha se desvencilhado do aperto e fugido, descendo as escadas chorando rumo ao porão.

E Petter resolveu deixa-la chorar. Ficou estagnado no lugar, olhando fixamente para o chão.

O que quer que fosse, tinha tirado dela todo seu lado maravilhado e esperançoso, aquele brilho no olhar, os olhos de menina, a inocência, a esperança. E ele sentia falta da garota que ela havia sido algum dia. Sentia falta de cada pequeno detalhe daquela criança que ele já havia segurado nos braços.

Por um segundo, puniu-se mentalmente por ter se mantido afastado por tanto tempo. Se ao menos ele estivesse lá aquele tempo todo, quem sabe ela não tivesse passado por aquilo. Quem sabe ela não tivesse sofrido, se ferido física e emocionalmente.

~X~

Emma jogou-se na cama, chorando copiosamente.

Tudo aquilo já vinha sendo difícil mesmo antes de Pette. Como ela esconderia aquela situação do tio? Como ela mentiria para ele por todo o tempo em que ele estivesse por lá?

E por quanto tempo mais tudo isso iria durar?

Por um segundo, refletiu. Sua vontade era correr para os braços do homem e contar tudo, cada instante de sofrimento e dor pelo qual ela já havia passado. Mas de que adiantaria, no final? Ninguém jamais havia acreditado em suas palavras, por que acreditariam agora?

Era idiotice crer que qualquer coisa mudaria. Era idiotice pensar que ele seria diferente, que ele acreditaria em tudo que ela dissesse, que ele não acharia que ela era apenas uma mimada sem respeito pelo homem que lhe deu a vida, por aquele que sempre a amou.

Afinal, o que a fazia pensar que ele era diferente? Era só mais uma daquelas pessoas que fingiam se importar, que não faziam ideia da dor que ela passara, de todo o sofrimento que recaiu sobre ela durante 14 anos, e que perduraria por, pelo menos, mais uns cinco.

Aquela era a punição dela. Aquela era a carga de sofrimento que tinha de carregar, e ninguém seria capaz de livrá-la das trevas que a assolavam desde sempre.

E pensando nisso, o choro somente se intensificou. Ela estava perdida

Naquele momento, teve a certeza de que morreria antes de saber o que era ser feliz.

~X~


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MensagemAssunto: Re: "The Wrong Way" - História. '-'   "The Wrong Way" - História. '-' Icon_minitime30/3/2013, 20:26

Capítulo 2
Paz momentânea, tormento constante.

Deitada no porão úmido e cheirando a mofo, naquele colchão cheio de furos e nós que torturavam cada centímetro de suas costas, olhando fixamente para uma rachadura em forma de sorriso no teto, Emma pensou em como parecia ter nascido para sofrer.

Fechou os olhos, e por um segundo, visualizou a imagem do pai. Os olhos sempre semicerrados, as sobrancelhas ralas arqueadas, os sinais da idade espalhados por todo seu rosto. Os cabelos, já um tanto ralos, loiros, porém acinzentando-se conforme a passagem dos dias, o corpo magro e seus bons 1,87 de altura. Ele poderia até ser alguém relativamente bonito, poderia passar a aparência de um homem de meia idade descente. Apesar disso, ao longo dos seus 53 anos, ele demonstrava-se cada vez mais rancoroso e odiável. E ah, como ela o odiava.

Parecendo ser o outro lado da moeda, a cara da coroa de seu pai, Petter tinha apenas 38 anos. Com seus olhos azuis esverdeados, que mudavam de cor conforme o dia, podendo chegar a ficarem azuis profundos, um sorriso lindo, a covinha tão acalentadora no queixo, as sobrancelhas grossas e os cabelos espessos, castanho escuros, sedosos e brilhantes, 1,80 de altura, porém não tão magro quanto seu pai.

E então, como de costume, imaginou a si própria. 19 anos, cabelos castanhos e compridos, intermediários entre o liso e o ondulado e que tinham a capacidade de parecerem ter saído das mãos de uma cabelereira sempre, o rosto que aparentava mais maturidade que a própria idade, os olhos escuros com cílios grossos, compridos e negros, a pele alva e os lábios bem delineados.

Por que, afinal, ela estava perdida naquele fim de mundo? Por que ela tinha que prender-se àquele inferno no qual vivia?

Refletiu sobre a ideia de fugir. Ela já havia atingido a maioridade, o que a impedia de pôr o pé na estrada e nunca mais voltar? Poderia mudar de nome, de cidade, trabalhar em uma lanchonete, guardar dinheiro até que conseguisse pagar uma passagem de avião para outro país, para que nunca mais tivesse que olhar na cada do repulsivo que ela era obrigada a chamar de pai. Mas no fundo, Emma sabia o que a mantinha presa em casa, e sabia que, por pelo menos mais uns quatro ou cinco anos, teria de ser obrigada a aguentar tudo aquilo de boca fechada.

E então, ela poderia fugir. Seria finalmente livre!

Se ela sobrevivesse até lá. E não achava que isso pudesse acontecer.

Barulhos na escada. Oh não. O coração da morena disparou de maneira descompassada, temendo pelo que vinha a seguir. Ela realmente esperou – ou, na verdade, tinha fé – que o pai não faria nada enquanto Petter estivesse por lá, ou, que pelo menos, lhe daria três ou quatro dias de folga. Mas ouvindo os passos pela escada que dava direto para a porta de seu quarto sem chave no porão, ela sabia que toda a esperança tinha sido em vão.

Continuou deitada, olhando para o teto e tentando evitar as lágrimas de rolarem pelo seu rosto. Uma leve claridade entrou pela porta quando essa foi aberta, e depois, se desfez, tão rápida quanto apareceu.

A garota apertou os lados do colchão com as mãos até suas articulações ficarem amareladas. Entretanto, quando a voz ecoou pelo quarto, ela sentiu-se mais feliz do que achou que poderia sentir-se.

- Emma, está tudo bem? – perguntou o tio, e ouviu um suspiro saindo da garota tão alto quanto foi possível.

Ela sentou-se no colchão, batendo com a mão ao seu lado para que o moreno se juntasse a ela.

- Tudo bem sim, meu tio. – disse ela, e, pela primeira vez em tanto tempo, aquela não era uma mentira. – Está tudo bem sim. – repetiu, para gravar completamente a sensação maravilhosa que era, pelo menos uma vez na vida, repetir aquilo sinceramente.

Afinal, enquanto seu tio estivesse ali, enquanto ela pudesse segurá-lo por perto, seu pai não faria nada.

- Está tarde, são duas horas da manhã, eu pensei que estivesse dormindo. – disse Emma, tentando quebrar o inquietante e incomodativo silêncio entre os dois.

Petter sentou-se ao lado da sobrinha e pôs uma perna dobrada sobre a cama, ficando de frente para a garota.

- Bem, até que eu tentei. – disse ele, passando as mãos pelo cabelo que reluzia diante da fraca luz que a lâmpada do ambiente produzia. – Mas Emma, eu estou preocupado com você. E eu sei que você me disse para esquecer desse assunto, mas seja o que for, eu não posso! Sou seu tio!

- Eu sei, Pette. – disse ela, e agora as lágrimas lhe vinham como socos no estômago. Tentou mantê-las dentro de si. – E eu agradeço por isso, mas não há com que preocupar-se. Eu estou bem.

O homem pôs sua mão por cima da mão branca e pequena da garota, puxando-a para junto de si, prendendo-a entre as suas.

- Você diz isso, mas não olha para mim. Fica com esse olhar perdido no nada, tentando evitar as lágrimas, tentando esconder de mim algo que te machuca... você sabe que não precisa fazer isso, não sabe?

E ao dizer isso, as lágrimas de Emma simplesmente vieram, e em um impulso, ela arremessou-se contra o peito do homem ao seu lado, molhando a camisa dele de lágrimas. Os braços de Petter contornaram, instintiva e protetoramente, o frágil e deprimido corpo da garota, marcado com hematomas que ele não saberia dizer de onde vinham.

Durante vinte minutos, ninguém falou nada, e os únicos sons emitidos eram os quase mudos soluços de Emma.

E então, Petter pegou a sobrinha no colo e colocou-a deitada na cama, cobriu-a com um cobertor fino e deitou-se por cima do mesmo, pondo a cabeça da garota em seu peito e cantarolando canções de ninar e cantigas doces, melodias que pareciam sair não dos lábios daquele homem, mas de algum lugarzinho no paraíso.

E a morena deixou-se levar pelas mesmas cantigas, deixou sua mente divagar por entre lugares bonitos e calmos, vagando pela letra de Smile, do Uncle Kracker, até que, por fim, o sono a venceu, e ela caiu no mundo da inconsciência. No mundo dos sonhos, onde tudo era belo e perfeito, e onde os braços de Petter a protegeriam não só de seu pai, mas de qualquer perigo que pudesse a assolar.

- Boa noite, minha pequena princesa. – foi a última coisa que ouviu antes de deixar de vez o mundo da consciência.

E naquela noite, John não apareceu.

~X~

A garota acordou pela manhã com os olhos inchados de tanto chorar. Ao seu lado, deitado no chão, por cima de dois ou três cobertores dobrados em uma falha imitação de colchonete, Petter dormia calmamente, respirando de maneira quase imperceptível, suas feições parecendo tão tranquilas quanto o próprio sono.

Enquanto fazia a volta pelo corpo adormecido no chão e dirigia-se rumo à cozinha, agradeceu a Deus por ele não ter dormido na mesma cama que ela, por ele ter sido sensível quanto à garota que tinha em seus braços. E acima de tudo, agradeceu pela sensação de segurança que há muito tempo não sentia.

Preparou o café, como de costume, pondo uns pãezinhos no micro-ondas para que ficassem quentes e macios. Cantarolando Smile, assim como seu tio havia cantarolado para ela na noite anterior, fez seu serviço de muito mais bom grado que normalmente, como se não estivesse preparando tudo aquilo para um verdadeiro monstro.

E ao ouvir passos atrás de si, de alguma maneira, sabia que era Petter. Só não sabia se essa certeza se dava por causa do perfume que ele exalava ou a sensação de harmonia que seguia seu corpo para todos os lados.

- Você sabe que não precisava fazer aquilo, não sabe? – falou ela, com a voz mais animada do que normalmente lembrava-se de usar.

- Eu quis. – ele respondeu, pegando as xícaras na cristaleira e pondo-as na mesa.

- Não, Pette! Deixa que eu faço! – ela insistiu, e o tio ergueu as xícaras o mais alto que pode, enquanto Emma pulava para tentar alcançar.

- Não, não, escrava Isaura. Eu ajudo. – o moreno falou, colocando a louça por sobre a mesma, mesmo sobre os protestos da sobrinha.

O micro-ondas apitou e Emma retirou de dentro dele os pães, colocando-os em cima da toalha florida.

Encarou a cozinha preta e branca com louças brancas e vermelhas. Estava tudo em ordem e muito bem arejado e iluminado. A mesa estava meticulosamente posta. O rádio ressoava baixo, tocando um pouco de blues suave. O jornal estava, adequadamente, acima da mesa. Acabando de verificar cada detalhe, pediu licença e virou-se, prestes a tomar parte ao banheiro.

- Não vai comer, Emma?

- Não tio. Não agora. – disse ela, sem virar-se. – Quem sabe mais tarde.

Pela primeira vez desde que podia se lembrar, ela tomou um banho calmo e demorado, aproveitando a água a escorrer por seu corpo intocado, sem aquela ansiedade para tentar fazer com que os resquícios de John saíssem de seu corpo junto com as lembranças negras a assolarem sua mente.

E por um segundo, sentiu-se quase normal, quase esperançosa de um futuro melhor.

E durante todo o dia, ela cantarolou Smile, como se aquela canção a pudesse proteger de tudo que era ruim e impuro em sua vida. Cantarolando essa música, ela quase sentia-se feliz.

~X~

Claro, a felicidade não duraria para sempre. E realmente não durou. Pouco antes de seu pai chegar em casa, telefonou para Petter e pediu que o irmão fosse ao mercado fazer as compras do mês. Deixou bem claro, também, que Emma deveria ficar em casa cuidando das roupas, pois, no outro dia, teria uma reunião e precisaria de terno, camisa e gravata separados e em bom estado, bem como um sapato polido, para passar a boa impressão.

Como se, na área de comércio de produtos de higiene pessoal, o mais importante fosse a estética adequada, não o produto a ser vendido.

Ao receber de seu tio essa notícia, Emma desabou no sofá, tentando não parecer abatida, o que na verdade, não era nada fácil, por que, de fato, ela estava abatida.

- Tem certeza de que não há uma maneira de você vir comigo? – insistiu o tio.

Ah, ela queria. E como queria. Queria sair com ele, dar um jeito de fugir de sua companhia e correr até que não tivesse mais pernas. Correr o máximo possível até ser pega e levada de volta para o inferno que ela costumava chamar de casa.

Mas sabia que era arriscado demais. E só iria deixar o pai mais furioso.

- Eu fico. – disse por fim, e viu o moreno sair pela porta com as chaves do carro e trancando a porta atrás de si, seguindo as ordens de John Leroy.

Afinal, desde que Petter havia perdido o emprego e se mudado temporariamente para a casa deles, estando debaixo do teto de John, era também seu subordinado. Deveria obedecer.

Essas eram as únicas ordens da casa: obedecer à John enquanto se vivesse por debaixo de seu teto.

Como se viver ou não naquela casa fosse, na realidade, uma opção para Emma.

E então, exatamente às 17:45, o pai passava por aquela mesma porta, com a raiva e a irritação estampadas em seu rosto. Nada de piedade.

Ele pegou a filha pelo pulso e jogou-a contra a parede, deixando um vergão por onde seus dedos apertaram. Mas ele não a soltou.

- Pode me explicar o que meu irmão estava fazendo em seu quarto ontem. Emma Marie? Quando foi que você deixou de me obedecer? Quando foi que contou a ele? – dizia o pai, os olhos saltados de ódio, balançando a filha de encontro à parede.

Quer dizer que ele tinha ido ao quarto da filha. O coração dela murchou, perdendo cada pequena centelha de esperanças que tinha criado enquanto acreditava que o pai a teria poupado uma noite apenas.

- Eu não contei, John! Juro que não disse uma só palavra!

- Então o que ele estava fazendo lá, afinal?

- Nada, papai! Nós estávamos conversando e eu acho que peguei no sono, não sei!

Ele a deu um tapa na cara.

- Você acha, sua chata desgraçada, que eu não sei quais são as suas intensões? Você acha que eu acredito em você? É só mais uma vagabunda, como a sua mãe.

- Você é um monstro, John! Eu tenho vergonha de ser sua filha, está entendendo? Vergonha! Você abusou de mim quando eu tinha nove anos! Logo depois de Petter ter ido embora aqui de casa! Eu era uma criança, você não tem vergonha? Eu te odeio! – disse ela, gritando ao ouvido do pai.

John agarrou Emma pelos cabelos, jogando-a no chão e chutando-a com força. As costas da garota estalaram com o baque mudo, e ela sentiu-se enjoada.

- Você acha que pode fugir, não acha? Acha que eu não sei onde te encontrar? Acha que eu vou sofrer? Pois saiba que farei gosto de te substituir pela pequena Lisa. Lembra dela, Emma?

- Não ouse tocar no nome de Lisa, seu crápula desgraçado, nojento e repulsivo! – gritou Emma, do chão, encolhida de dor.

- Ah, eu ouso sim. Melhor ainda, vou mostrar para você exatamente o que eu farei com a pequena Lisa se você ousar me desobedecer novamente.

Naquele momento, Emma sabia exatamente o que iria acontecer.

~X~

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